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REVITIMIZADAS

Segundo a advogada Christiany Pegorari, especialista em Direito Digital, as estruturas de atendimento funcionam até certo ponto, pois não são estabelecidas de forma suficiente e, muitas vezes, revitimizam a vítima dentro do próprio sistema que deveria acolher, orientar e ajudar. “Muitas vezes quando a mulher procura o sistema de segurança e Justiça para denunciar e comunicar uma situação de violência, na busca de ajuda e acolhimento, nem sempre, ela acaba encontrando da forma que deveria e nem sempre é atendida adequadamente”, conclui. 

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Esse cenário é visto também em Campinas (SP), declara a vereadora Paolla Miguel (PT): “quem vai fazer o atendimento e receber essa denúncia não está preparado para realmente fazer uma escuta acolhedora, é uma escuta desencorajadora”. A parlamentar ainda comenta que quando uma mulher vai até a uma delegacia delatar situações de exposição de imagens íntimas, por exemplo, é desencorajada a continuar com a queixa e muitas relatam que saem das instituições sem fazer a notificação.

 

A psicóloga Bianca Orrico, da SaferNet Brasil, indica que é fundamental que exista um cuidado para minimizar a revitimização e culpabilização durante o processo judicial. “Isso pode ser alcançado através de procedimentos judiciais sensíveis e adaptados às necessidades das vítimas”. Entre as estratégias que ela sugere que sejam usadas, estão: entrevistas em ambiente seguro e acolhedor, limitação do número de vezes que as vítimas precisam recontar sua história, ações para evitar a intimidação ou confronto direto com o agressor e encaminhamento para serviços de assistência, para que seja possível ter todo o apoio necessário ao longo do processo. 

DESAMPARADAS

Com a evolução dos usos  da internet, novas formas de violência de gênero se desenvolveram. As características do ambiente virtual, como a sensação de anonimato, possibilidade de amplo alcance e replicabilidade, tornam mais favorável o cenário do crescimento da hostilidade. Apesar de existirem leis em vigência de proteção às mulheres na web, a advogada Christiany Pegorari garante que não são suficientes para evitar o cenário de agressão.

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A especialista apresenta as principais legislações de defesa ao sexo feminino na internet:

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Carolina Dickman

Lei 12.965/2012

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Marco Civil

Lei 12.965/2014

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Lola Aronovich

Lei 12.642/2018

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Rose Leonel

Lei 13.772/1018

Conhecida como Lei Carolina Dieckmann, criminaliza a invasão de dispositivos. A norma se inspira no caso da atriz, que teve seu computador pessoal invadido em 2011. Os criminosos divulgaram 36 fotos íntimas após ela recusar-se a ceder à extorsão.

Essa legislação estabelece princípios, direitos e deveres para o uso da internet no país. Tem como objetivo garantir a liberdade, a privacidade e a neutralidade da rede, além de estabelecer regras para a responsabilidade de provedores de serviços na internet.

Conhecida como Lei Lola,

a legislação atribui à Polícia Federal a investigação de conteúdos misóginos na internet. Recebeu esse nome em homenagem à ativista que, há mais de

uma década, é vítima de ameaças, ofensas e calúnia  constantes na internet e fora dela.

Conhecida como Lei Rose Leonel, criminaliza a captura, compartilhamento e montagens de conteúdo íntimo sem autorização. Recebeu esse nome em homenagem à jornalista, que, em 2005, foi alvo de revengeporn pelo seu ex-noivo, que divulgou fotos delas em sites.

maioria dessas leis foram inspiradas em figuras públicas e mulheres brancas, após terem sido alvos de violência no virtual e o caso gerar grande comoção social e repercussão midiática. A advogada Christiany Pegorari alerta que, apesar de ser um avanço essas regras, existem barreiras que dificultam a sua finalidade: “Muitas vezes, a legislação, quando ela é criada, não atende às necessidades, ou porque tem uma descrição muito restritiva, ou porque tem uma descrição muito abrangente”. 

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O que a especialista quer dizer é que quando o legislador escreve uma lei que não deixa clara qual conduta deve ser criminalizada, fica nas mãos do juiz interpretar e determinar se a ação se enquadra no tipo penal, e isso é um dos fatores que também dificulta a efetividade das legislações.

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Assim, um sistema judiciário influenciado pelo machismo e o patriarcado pode gerar falhas, já que “o juiz não é neutro. Ele tem que ser imparcial, ou seja, ele não tem interesse no resultado do processo, isso é imparcialidade, isso é uma exigência legal, mas nenhum magistrado é neutro, como nenhuma pessoa é”, argumenta a professora de direito da PUC-Campinas. 

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Quando o magistrado faz um julgamento de uma determinada situação – ainda mais com uma legislação pouco clara – , ele vai ser motivado a partir do seus valores e isso afeta a forma como julga. “Então, se eu tenho um juiz que de alguma forma é influenciado por uma situação de machismo e patriarcado, isso vai interferir na decisão dele”, assinala a especialista.

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Dessa forma, Christiany Pegorari  salienta que é preciso trabalhar na mudança de cultura também dentro do Poder Judiciário, para que cada vez menos haja a influência de preconceitos nas decisões. 

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Outro aspecto é que grande parte das leis que tem o intuito de resguardar a segurança da mulher no ambiente virtual são desproporcionais aos danos causados. Para a advogada, penas baixas  permitem  ao agressor continuar praticando os crimes, pois não existe um desestímulo para inibir a prática. “Se o indivíduo é réu primário, tem bons antecedentes e outras circunstâncias que o beneficiem, certamente ele não vai pegar pena máxima e certamente não vai ficar em regime fechado, ele vai ficar em regime aberto. Então não vai ficar preso efetivamente dentro do sistema prisional”, elucida Pegorari.

INVASÃO DE DISPOSITIVO INFORMÁTICO
Pena – reclusão de 1 a 4 anos, e multa.
REGISTRO DE IMAGEM ÍNTIMA SEM AUTORIZAÇÃO 
Pena – reclusão de 1 ano, e multa.
DIVULGAÇÃO DE IMAGEM ÍNTIMA SEM AUTORIZAÇÃO
Pena – reclusão de 1 a 5 anos, e multa.
CYBERSTALKING
Pena – reclusão de 6 meses a 2 anos, e multa.
DIFAMAÇÃO
Pena – detenção de 3 meses a 1 ano, e multa.

Essas leis são muito recentes, algumas ainda estão em tramitação no Senado, como a Lei de Estupro Virtual, que poderá receber a pena de reclusão de 8 anos a 15 anos, e a Lei de Misoginia, que a pena poderá chegar de 2 a 5 anos, e multa. Já a conduta de sextorsão mesmo sendo considerada uma violação, ainda não existe nenhum projeto de norma que busque criminalizá-la.

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Os projetos entraram em discussão porque os atos de violência contra a mulher vêm tomando proporções cada vez maiores. O índice expressivo de queixas na central de denúncia da SaferNet Brasil foi o de ódio e aversão ao gênero feminino. Segundo a ONG, em 2022 foram registradas mais de 193 mil denúncias de condutas odiosas. No geral, houve um crescimento de 28,78% nas notificações em comparação ao ano de 2021.

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Os levantamentos também indicam que o discurso de ódio contra mulheres foi mais intenso em anos eleitorais. Em 2018, o número de denúncias saltou de cerca de 961 em 2017, para 16,7 mil. Já em 2022, o número subiu para 28,6 mil, 81% a mais do que em 2021.

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Diante dos números exorbitantes de violência e embora a Lei da Misoginia ainda não tenha sido aprovada, a Declaração Universal dos Direitos Humanos considera atos misóginos como violações dos direitos fundamentais, pois colocam a mulher em situação de rejeição e desigualdade. Essa disparidade entre os gêneros reflete em consequências dentro e fora da internet. Bianca Orrico, psicóloga da Organização Não Governamental (ONG) SaferNet Brasil, explica que o sexo feminino frequentemente é alvo de assédio, ameaças, perseguição e abuso online, e que as motivações estão relacionadas com o desejo de silenciar, controlar e intimidar.

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Atualmente, a única legislação em vigência de combate à misoginia e que oferece proteção legal às mulheres vítimas dessas condutas na internet, é a Lei Lola – criada pela deputada federal Luizianne Lins (PT-CE) – que atribui a Polícia Federal a investigação dessas práticas. 

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A lei foi motivada pela história de Lola Aronovich, feminista e professora universitária, que constantemente é alvo de grupos do que ela nomeia  “mascus”. Ela e seus familiares foram diversas vezes ameaçados em fóruns anônimos virtuais. Por essa razão, a ativista é uma das principais delatoras do discurso de ódio contra as mulheres.

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No entanto, ainda é um desafio tornar a lei conhecida. “Agora a gente está esperando que com um governo progressista, essas leis realmente andem. E que sejam mais conhecidas da população, porque eu recebo muitos e-mails ainda de mulheres e até meninas, em pânico, morrendo de medo porque estão sendo atacadas na internet e não sabem como agir. Elas gostariam de saber como usar a Lei Lola em seu favor e a gente muitas vezes nem tem como responder isso”, relata.

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Essa dificuldade de percepção pode ser vista em outras leis também, conta a superintendente e coordenadora do GAMA de Campinas. “Por terem sido inseridos há pouco tempo no Código Penal, é de pouco conhecimento das mulheres que a violência psicológica é crime e está prevista no Código Penal e a perseguição também”, salienta Cristina Borin. 

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Outro fator fundamental reforça esse cenário de agressões, é que a legislação continua sendo encarada como a principal solução, realça a advogada e professora da PUC-Campinas Christiany Pegorari. “Ela é um dos instrumentos, mas não resolve todos os problemas. Embora seja geralmente apontada como a principal solução, na verdade é um instrumento e quando é aplicada, é quando a situação de violência já se configurou”, enfatiza.

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Segundo a especialista, a produção legislativa não é o bastante para garantir que a mulher fique a salvo de situações de violência, é necessário que outras áreas trabalhem em conjunto e sejam elaboradas uma série de medidas que vão além da produção legislativa. “É preciso trabalhar aspectos relacionados à educação, políticas públicas preventivas, investimento nas estruturas de proteção às mulheres, atendimento e suporte”, indica.

NEGLIGENCIADAS

Grande parte das manifestações de discursos de ódio ou vazamento de imagens íntimas circulam pelas plataformas digitais, no entanto, as empresas são privadas, mas os risco são públicos e os proprietários dessas mídias não exercem um papel ativo de moderador na remoção dos conteúdos ou bloqueio desses usuários criminosos e não possuem um suporte efetivo. 

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Segundo a SaferNet Brasil as redes sociais que mais são utilizadas para aparições dessa finalidade são: X (conhecido Twitter), que soma 13,9 mil denúncias; TikTok, com 7,8 mil notificações e o Instagram, com 3,3 mil queixas na central da ONG. E em 2022, processaram 28.679 registros anônimos de violência ou descriminação contra mulheres, abrangendo 8.734 páginas distintas. Dessas, 4.195 foram removidas.

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A grande parte das violações na web passaram a ser mais expressivas diante das críticas negativas e da negação ao politicamente correto – termo usado para descrever ações que evitam ofender, excluir e/ou marginalizar pessoas. A pesquisadora do Núcleo de Estudo de Gênero PAGU/Unicamp, Iara Beleli, pontua que a queda dessa preocupação fortalece o cenário de agressões: “Existe a possibilidade de você ter discursos ainda mais violentos, por não ser responsabilizado por nada do que você fala, então isso reforça essa situação”.

 

A ativista e professora universitária Lola Aronovich, que sofre ataques constantes desde a criação de seu blog “Escreva Lola Escreva”, destaca que é necessário que a Justiça regulamente as mídias digitais. “Então, precisa ter uma responsabilização das big techs para que elas sejam autuadas pelo conteúdo que é produzido e divulgado nelas; é preciso ter conscientização e educação midiática sobre o que pode e o que não pode na internet”, avalia. 

 

Para compreender os problemas que envolvem a regulamentação das redes, questionamos o matemático e cientista de dados Valdomiro Placido, que atua como Coordenador do Curso de Graduação em Ciência de Dados e Inteligência Artificial (IA) da PUC-Campinas. Ele explica que o entrave principal é definir quem será o regulador: o governo? As próprias big techs? Representantes da sociedade civil? Nenhum país ainda resolveu essa questão.

 

Apesar das redes sociais ainda não terem sido moderadas, o cientista de dados garante que existem recursos próprios de IA que permitem filtrar conteúdos impróprios e bloquear discursos de ódio. Para Placido, o problema para avançar na segurança digital não é a falta de tecnologia, mas sim a falta de vontade e determinação política para encaminhar soluções para essas questões.

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No caso da exposição de imagens íntimas, por exemplo, existem algoritmos capazes de identificar facilmente a exibição pornográfica real ou sintética. “Se as redes sociais tiverem boa vontade, podem bloquear o compartilhamento de imagens sabidamente pornográficas”, critica o cientista de dados, completando que a busca por uma regulação universal acaba servindo como pretexto para nada se fazer

 

Mesmo existindo recursos para coibir essas condutas, não há estímulos para que as entidades coloquem em prática os recursos disponíveis, pois faturam com as manifestações odiosas, explica o especialista. ”Em resumo, o modus operandi dos algoritmos estimula a propagação do ódio e da violência na internet, representando um grande risco para a sociedade. Se nada for feito, sofreremos cada vez mais as consequências, pois as empresas não mudarão os parâmetros desses algoritmos, uma vez que são voltadas para o lucro”, conclui.

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Para a atriz Claudia Campolina, criadora da websérie “Mundo Invertido”, que já foi censurada nas redes por causa de seus vídeos de humor, as mídias não combatem o que deveriam e liberam o que deveriam combater. “Me  parece muito maluco um vídeo de sátira, de ironia, declaradamente assim, de uma atriz, ser um problema para plataforma e alguém utilizar a plataforma para ameaçar de morte uma mulher, não ser um problema, ser, sei lá, liberdade de expressão”, ela diz. 

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Atualmente, não existe em vigência uma norma que regulamenta as plataformas. Ainda está sendo discutido no Senado o Projeto de Lei n° 2630, de 2020, que estabelece a transparência, responsabilidade e o combate à desinformação aos provedores das redes sociais.

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