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ONLINE E DESPROTEGIDAS

A invisibilidade da violência virtual

EXPOSTAS

A jornalista Rose Leonel trabalhava como apresentadora de um jornal em Maringá (PR) quando, em 2005, o seu ex-noivo enviou e-mails com fotos dela nua para amigos, familiares e colegas da empresa. A vingança pelo rompimento do relacionamento de quatro anos não se limitou a isso: ele queria lesar a sua integridade moral ainda mais, então fez montagens pornográficas, publicadas em sites nacionais e internacionais, além de distribuídas em CDs pela cidade. Os ataques refletiram na demissão da jornalista e, mesmo depois do agressor ter sido processado judicialmente, ele continuou a difamá-lá. 

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Após cerca de cinco anos de perseguição, o empresário Eduardo Gonçalves da Silva foi condenado à prisão por injúria e difamação, com pena de 1 ano, 11 meses e 20 dias de semi-reclusão, porém, conseguiu convertê-la em multa e prestação de serviços. Apesar da flexibilização da pena, Rose foi uma das primeiras mulheres a conseguir responsabilizar o culpado na Justiça por ferir a imagem dela dentro e fora da internet, e ajudou a alterar a legislação para que fosse possível tipificar o crime. Contudo, a criminalização não foi o suficiente para evitar que sua história se repetisse. Na verdade, o número de ‘Roses’ cresceu de maneira de forma intangível. 

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O modo de agir usado por Eduardo e por tantos outros para humilhar publicamente companheiras ou ex-companheiras se tornou tão comum mundialmente que ficou conhecido como “revengeporn”, que significa pornografia de vingança traduzido do inglês. Esse crime consiste na propagação de fotos, vídeos, áudio e até montagens de conteúdo sexual, como é o caso de Rose, que tem imagens replicadas até hoje. 

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A psicóloga Bianca Orrico, que atua na Organização Não Governamental (ONG) SaferNet Brasil, especifica que as principais vítimas em casos de divulgação não consensual de imagens íntimas são mulheres, na faixa-etária entre 15 a 29 anos. Além disso, ela diz que esse crime está relacionado a diversos fatores como desigualdade de gênero e a desumanização da mulher, que colocam o sexo feminino em papéis de objeto sexual e de submissão.

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No Brasil, a região onde existe o maior índice de registros de pedidos de ajuda em casos de exposição íntima, segundo a SaferNet, é o Estado de São Paulo (veja um mapa com os dados). Isso não significa que as paulistanas são as que mais sofrem com o crime, já que a subnotificação desse tipo de delito é alta e existem poucos dados oficiais. Procurada pela reportagem, a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), responsável pela administração das polícias em todo Estado, enviou duas longas planilhas dos anos de 2020 a 2023 informando dados extraídos do sistema de Registro Digital de Ocorrências (R.D.O) que apontam "não haver na base fornecida o tratamento metodológico necessário para qualificá-los como dados estatísticos oficiais". 

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Na região de Campinas, no interior paulista, também não existem dados oficiais que informem o número de denúncias, embora os órgãos de proteção declarem receber vítimas constantemente. O Centro de Referência da Mulher em Campinas (Ceamo) alega que a exposição de fotos nuas sem consentimento está entre os principais crimes virtuais sofridos pelas vítimas de violência doméstica, e, geralmente, é cometido por ex ou atuais companheiros. 

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Cerca de 200 casos de diferentes tipos de violência chegam às mesas das assistentes sociais e psicólogas do Ceamo por mês, além de outros, por meio de busca ativa ou procura espontânea da vítima. Todavia, na hora de formalizar a acusação, cerca de 75% não aceitam denunciar o agressor. Nas delegacias, a falta de queixas se repete e o número de boletins de ocorrência feitos à polícia é irrisório ou encoberto por uma pilha de casos de violência doméstica, onde a exposição íntima é somente mais uma das agressões sofridas pelas mulheres.

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Em busca de dados, a reportagem também procurou a Delegacia de Investigações Gerais (DIG), o CyberGaeco do Ministério Público de São Paulo e as duas Delegacias de Defesa da Mulher (DDM) de Campinas, uma cidade com cerca de 1.138.309 habitantes, segundo o censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) de 2022. Até a publicação desta reportagem, nenhum desses órgãos forneceu números estatísticos sobre crimes virtuais contra mulheres, apenas a 2ª DDM de Campinas, responsável pela maioria dos bairros periféricos da cidade, revelou um dado, no mínimo, curioso: 

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“Foram registradas quatro denúncias de exposição de imagens íntimas de mulheres entre janeiro e setembro de 2023"

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O número acima, o único fornecido por órgãos públicos, não reflete a realidade vista no Ceamo e no programa Guarda Amigo da Mulher (GAMA), da Guarda Municipal (GM) de Campinas. A Superintendente da GM e coordenadora do projeto, Cristina Borin, afirma que a corporação recebe vários casos de mulheres vítimas de crimes digitais – inclusive de exposição e fotomontagem de imagens íntimas –, mas que a violência sempre começa no domicílio e se estende para o virtual. Em média, cerca de 160 campineiras são assistidas por dia pelo programa, no entanto, esse número é muito rotativo, alega Borin.

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Segundo informações da GAMA, ao serem afastados judicialmente, alguns agressores criam perfis falsos e tentam descobrir sobre a vida íntima da ex-companheira. Caso eles acreditem que elas estão se abrindo para um novo relacionamento, passam por cima da medida de proteção e tentam novamente se aproximar fisicamente. “Nós temos casos, também, que eles tentam reconquistá-las. E outros continuam agredindo e falando: ‘você pensa que você vai se esquivar, espera, eu vou te achar, eu vou te encontrar’ ”, revela. 

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É importante ressaltar que a exposição íntima pode estar entre as principais violências sofridas pela mulher na internet, mas não é a única. Além desse delito, o Ceamo e a Gama revelam que cyberstalking – que significa perseguição em tradução livre do inglês –  e difamação são os outros crimes mais cometidos contra o sexo feminino que chegam nos programas de proteção contra violência doméstica. 

  Alguns tipos de violências cibernéticas  

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 Invasão de dispositivo informático 

O invasor acessa celulares, computadores ou sistemas informáticos para obter, adulterar ou destruir dados a fim de obter vantagem ilícita.

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 Exposição de imagem íntima sem autorização 

O transgressor compartilha fotos íntimas sem consentimento ou invade dispositivos para obtê-las.

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 Estupro virtual 

O violador, na posse de conteúdos íntimos da vítima e através de violência psicológica e ameaças, coage e exige que a mulher faça atos sexuais virtuais.

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 Misoginia 

O ofensor expressa discursos e comportamentos de ódio, aversão e preconceito às mulheres.

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 Registro de imagem sem autorização 

O contraventor produz, fotografa, filma ou registra, por qualquer meio, conteúdo com cena íntima e privada de nudez ou ato sexual sem autorização dos participantes

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 Cyberstalking 

O criminoso, por meio de violência psicológica, persegue, vigia e monitora através da internet ameaça e assedia a vítima.

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 Sextorção 

O agressor ameaça divulgar conteúdo íntimo da vítima, na tentativa de obter vantagem financeira ou reatar o relacionamento.

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 Difamação 

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O transgressor atribui fatos ofensivos contra a honra com a intenção de desacreditá-la na sociedade em que vive, e provocar contra ela desprezo público.

APAGADAS

A falta de dados sobre o número de mulheres vítimas de crimes virtuais em Campinas (SP) reflete o “apagão de dados” que a cidade sofre, apontado pela vereadora Paolla Miguel (PT), que está entre as quatro mulheres que ocupam uma das 33 cadeiras da Câmara Municipal. A parlamentar também faz parte da Comissão dos Direitos Humanos da Casa. 

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“A ausência de dados de política também é uma política. Então, isso dificulta com que a gente justifique a ampliação de serviços. E aí a prefeitura fica sempre ali, se desviando do assunto. “Ah, mas a gente não tem demanda, a gente não consegue justificar a demanda. Vai ampliar para quê? Por quê?”, argumenta a parlamentar, destacando que tal abordagem enfraquece as redes de proteção da cidade.

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Os boletins anuais do Sistema de Notificação de Violência (SISNOV) da metrópole não trazem dados sobre a violência no ambiente virtual. Apesar de divulgar os números de queixas sobre violência doméstica – como crimes contra a integridade física, mental e patrimonial –, o próprio órgão enfatiza que os dados não são um retrato da gravidade da violência contra as mulheres, uma vez que a subnotificação é um problema que afeta todo o país.

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Além disso, o SISNOV considera que o afastamento das mulheres de órgãos de proteção – como escolas e unidade de saúde – pode ter corroborado para que o número de denúncias de violência doméstica tenha caído 16% entre 2020 e 2021, comparado com 2019.

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Quanto à violência virtual, a ausência de dados é apenas a ponta do iceberg, já que as mulheres enfrentam a dificuldade em perceber que foram vítimas de cibercrimes. Durante a produção desta reportagem, procuramos Conselho da Mulher, Ceamo, GAMA e ocupações feministas, e, apesar de existir uma justa preocupação com a violência física, não encontramos nenhuma ação ou campanha específica para crimes ou ataques digitais contra o gênero feminino

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Segundo a psicóloga da ONG SaferNet Brasil, Bianca Orrico, a falta de educação digital pode contribuir para a subnotificação. O próprio Ceamo relata que as mulheres já têm dificuldade para enxergar a violência doméstica, e no caso da virtual pode ser ainda mais difícil. “A vítima também pode ter receio de relatar sobre uma violência. Além disso, a falta de clareza sobre como denunciar esses crimes e a percepção de que as autoridades podem não ser capazes de resolver o problema também podem desencorajar as denúncias”, completa Bianca. 

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A vereadora Paolla Miguel (PT) destaca a carência de serviços que proporcionem à mulher a segurança necessária para realizar denúncias. “Eu acho que esse é o ponto central das coisas”, enfatiza. Ela também critica o principal órgão de proteção às mulheres, o Ceamo, que opera em horário comercial de segunda a sexta e está localizado no Centro da cidade. Segundo a parlamentar, as mulheres que residem em regiões periféricas e mais afastadas enfrentam dificuldades para chegar ao local, devido ao conflito com a jornada de trabalho.

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ATACADA

Por ser uma figura-pública, Paolla Miguel (PT) acaba sendo alvo de extremistas. A parlamentar diz sentir na pele a violência, pois recebe uma série de manifestações de ódio dentro e fora da Casa do legislativo: “O fato de eu ser mulher, negra, jovem, bissexual e de esquerda faz com que todos esses ataques cheguem meio que juntos nas redes”, observa. 

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A vereadora nota que as ofensivas que recebe são mais violentas do que as direcionadas aos colegas homens, mesmo quando estes defendem as mesmas causas. Além de serem agressivas, afirma que as críticas direcionadas à ela fora e dentro das redes têm cunho sexista: “Chega para mim é muito do tipo: “Ah, vai lavar uma louça”. Ou perguntando se meu pai, namorado deixou estar aqui [na Câmara do Municipal]”.

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Em suas redes sociais, os comentários misóginos são velados e menos diretos, mas Paolla repara que ainda são discursos carregados de agressividade e ódio. “O que acontece bastante são homens que gravam stories e me mencionam, principalmente da extrema-direita, ou então mandam mensagens no privado. E aí já tiveram pessoas que eu bloqueei por conta disso, porque eram extremamente ofensivas, agressivas, com cunho racista e machista”, comenta. 

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Diante da falta de estrutura de segurança, ela conta que em alguns momentos se sente insegura e com medo. “Me faz muitas vezes pensar se esse espaço que eu estou ocupando na politica, de tanta exposição assim, se ele é seguro, se consegue garantir a minha segurança”, relata.

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